
As cicatrizes que João Paulo carrega — pelas brigas que já teve na rua e pela indiferença de quem passava e parecia não o enxergar — também marcam quem dividia com ele o mesmo espaço inseguro. Mostrar para essas pessoas que elas são iguais a qualquer outra e ajudá-las a recuperar a autoestima é um dos principais objetivos do projeto, que já fez 60 ex-moradores de rua procurarem um lar para recomeçar. “A partir do momento em que a pessoa que o ignorava passa a conversar sobre a revista, ele se sente visto, valorizado”, explica o editor-chefe e idealizador da publicação, André Noblat.
Segundo ele, o primeiro impacto da revista é em relação à violência. Noblat estima que cerca de 70% de quem ingressa no projeto tem envolvimento com drogas. Aos poucos, a maioria, assim como no caso de João, abandona o vício e volta a sonhar. O morador do Entorno de Brasília começou a usar entorpecentes aos 16 anos, depois que veio de Goiás para procurar o pai. Após quatro meses vendendo a publicação, decidiu se internar em uma clínica de reabilitação e largar o crack. “Não é fácil. Todo dia eu sinto vontade de fumar, mas eu penso em aguentar mais cinco minutos, e o tempo vai passando”, conta João Paulo.
O jovem voltou a estudar, faz curso de cabeleireiro e, em paralelo com a Traços, começou a vender cosméticos. Nos dias com a rotina mais puxada, vai ao Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop) do Plano Piloto, vinculado à Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, que lhe presta atendimento psicológico. Ele também aguarda a liberação do auxílio excepcional (uma ajuda de custo no valor de R$ 600 para o pagamento de aluguel) — outro benefício da pasta. Em parceria com o projeto da revista, o centro também foi o responsável pela seleção dos primeiros 50 moradores de rua que iniciaram a venda da Traços.
Segundo Diogo Zelinschi, assessor do Centro Pop do Plano Piloto, o diálogo sobre a Traços começou há muito tempo. Tanto para o governo quanto para os idealizadores do projeto era essencial que essas pessoas tivessem acompanhamento psicossocial.
“Não é um processo simples, em que só de entrar na revista a pessoa sai da rua”, pontua o editor-chefe, que conta ter levado dez anos para o projeto sair do papel. Antes, ele e a equipe estudaram como a iniciativa, que existe em outras 123 cidades do mundo, funcionava em outros países. “Percebemos que, nos locais onde dá mais certo, há preocupação com quem está participando e acompanhamento próximo.”
Cerca de 30 dos 70 beneficiados com a iniciativa fazem acompanhamento no Centro Pop com assistentes sociais e recebem auxílios como cesta básica e outras necessidades. “Era uma demanda da própria secretaria algum projeto que promovesse renda para essas pessoas. Com essa parceria, conseguimos atender efetivamente parte dessa população e fazer com que elas mudassem de rumo”, afirma o assessor do Centro Pop.
Zelinschi explica que o acompanhamento é feito tanto na casa dos ex-moradores de rua, quanto na unidade da Asa Sul. A ideia é manter relação de proximidade e ajudar as pessoas a retomar a vida em uma casa e ter emprego, por exemplo. “Muitos não eram mais acostumados a ter um lar, pagar aluguel, conviver com a família. O trabalho é garantir que eles consigam passar por isso sem dificuldades.”
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